O tema escolhido como base para as reflexões na Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla, propõe pensar uma questão muito vivenciada no cotidiano, mas atualmente pouco percebida e debatida, que é a indiferença social. Isto por conta das bases culturais que vem se arrastando historicamente.
Tema da Semana:
“A pessoa com deficiência quebra a cultura da indiferença. Tenha coragem de ser diferente."
Este ano decidimos trabalhar com mais intensidade uma das impressões que mais comovem e encantam, aos que de alguma forma, passam a conviver com pessoas com deficiência intelectual, que é a ingenuidade no sentido da forma simples como entendem seu meio e o exemplo de superação que demonstram no dia a dia.
Texto Base da Semana:
É fato que, historicamente, existe uma grande dívida social para com as pessoas com deficiência. Ao falar de dívida, faço referência a grande falta de políticas públicas voltadas para garantia de qualidade de vida das pessoas com deficiência na América Latina até o século XX, a falta de direitos assegurados em leis, a falta de debates sociais e políticos a respeito das necessidades das pessoas com deficiência e a falta de apoios voltados às necessidades de cada deficiência, o que justifica a dificuldade de cobrar que os direitos, agora assegurados à pessoa com deficiência, sejam de fato cumpridos em sua totalidade, assim como ainda são difíceis os debates sobre os temas que envolvem as perspectivas dos movimentos sociais.
Carta da Organização dos Estados Americanos, no artigo 3, alínea j, fala sobre o princípio "a justiça e a segurança sociais são bases de uma paz duradoura". A justiça somente é conquistada quando as leis que garantem os diretos de um povo é respeitada em sua totalidade. Direito é a garantia de princípios necessários para qualidade de vida de uma sociedade. Assim, no Brasil, para assegurar uma sociedade justa contamos com as garantias já estabelecidas na constituição de 1988, no revolucionário artigo 5º que, na sua introdução expõe: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Estes princípios foram garantidos através de inúmeras lutas sociais da geração passada, que nos deixaram como legado garantir esses princípios, para que tenhamos uma sociedade de fato justa.
Os princípios constitucionais são a base para formulação de conceitos dos movimentos sociais das mais variadas vertentes. As entidades de luta de direitos da pessoa com deficiência têm sido militantes na garantia dos princípios constitucionais conseguindo o avanço de importantes pontos fundamentais para qualidade de vida da pessoa com deficiência em vários níveis, como: autonomia e participação na sociedade, atendimento clínico, acessibilidade física, conquista de apoios em locais de grande circulação, criação de conselhos municipais e estaduais para debates sobre a situação da pessoa com deficiência nestes contextos, dentre outros avanços sociais. Agora a luta é fazer com que todas as pessoas com deficiência tenham acesso a essas garantias e criar meios para que possam expressar suas necessidades para buscar novos espaços. Desta forma, as entidades são agentes de desenvolvimento social sem as quais o estado brasileiro não teria avançado na conquista da justiça para as pessoas com deficiência.
Avançando na luta por respeito aos direitos da pessoa com deficiência, a Federação Nacional das Apaes se dedica a ouvi-las a respeito das suas expectativas, criando espaço para que elas possam nos mostrar qual caminho deve ser seguido pelos movimentos sociais nos próximos anos, resgatando um dos direitos mais básicos de todo ser humano, que é a liberdade de expressão, que há muito tinha sido retirado das pessoas com deficiência por diversas culturas e sociedades, o que chegou a nós como herança.
Platão, em seu livro “A república” descreve a situação da pessoa com deficiência no estado da seguinte maneira:
Sócrates — As crianças, à medida que forem nascendo, serão entregues a pessoas encarregadas de cuidar delas, homens, mulheres ou homens e mulheres juntos, pois as responsabilidades são comuns aos dois sexos.
Glauco — Estou de acordo.
Sócrates — Estes encarregados levarão os filhos dos indivíduos de elite a um lar comum, onde serão confiados a amas que residem à parte, num bairro da cidade. Para os filhos dos indivíduos inferiores e mesmo os dos outros que tenham alguma deformidade, serão levados a paradeiro desconhecido e secreto.
Glauco — É um meio seguro de preservar a pureza da raça dos guerreiros.
Este diálogo foi escrito por Platão entre 380 e 370 a. C, demonstrando qual o posicionamento grego frente à questão das deficiências. Para ressaltar este posicionamento, farei referência a Plutarco (50-120 d.C.), que comenta sobre a situação da criança espartana, que era analisada por membros do governo, que verificavam sua constituição física e seu estado de saúde. Se fosse considerada normal e saudável, merecia os cuidados do Estado. Se fosse doente ou tivesse alguma deficiência física ou intelectual, podia ser imediatamente morta, sem qualquer remorso. Noção que perdurou na idade média, mudando apenas a justificativa, pois neste período a deficiência passa a ser entendida como castigo divino. Alguns senhores feudais por influência do cristianismo mantinham as pessoas com deficiência em casas de assistência mantidas por eles.
É importante citar os gregos antigos, por serem berço das mais variadas sociedades modernas, deixando impressões fortes na cultura dos povos ocidentais, como por exemplo: democracia, filosofia, olimpíadas, gêneros teatrais, poesia e muitos outros traços sociais que surgiram na Grécia antiga persistem no mundo contemporâneo.
Assim podemos culpar a cultura pelas atrocidades históricas contra a pessoa com deficiência sem nos eximir da culpa?
Esta questão motivou o movimento de contracultura no Brasil, a partir da segunda metade do século XX, quando motivados pela vontade de mudança, pais de pessoas com deficiência, amigos e profissionais de várias áreas, se juntaram para fundar as primeiras entidades e associações, com intuito de demonstrar o potencial das pessoas com deficiência e trazer o foco da discussão para questões sociais e não mais para diagnósticos clínicos de incapacidade simplesmente, pois clinicamente estas pessoas têm suas limitações, mas dentro de suas limitações são produtivas socialmente, desde que tenham oportunidades de aprendizagem.
Os gregos acreditavam que deveriam manter as pessoas com deficiência fora do convívio social para garantir uma sociedade forte, mas questiono este posicionamento da seguinte forma: como uma sociedade pode ser forte se tem medo de uma criança? Isto já não seria covardia?
Por séculos as histórias dos heróis, como: Aquiles, Odisseu, Perseu e tantos outros, extasiaram gerações pela grandeza de seus feitos. Assim proponho que reflitamos sobre as histórias de superação das pessoas com deficiência e o empenho de seus familiares para seu desenvolvimento, pois acharemos feitos tão nobres quanto os daqueles heróis. Nesta perspectiva as pessoas com deficiência e suas famílias tem nos ensinado muito sobre fortaleza e heroísmo.
Esta quebra da cultura representa a ruptura de velhos conceitos, em virtude de novos que consigam aproximar a sociedade da justiça.
A indiferença sem dúvida é uma das piores heranças culturais, sendo o ato de ignorar aquilo que é diferente. Esta é uma atitude que nos torna covardes, pois quando se começa a eximir de suas responsabilidades com o outro, o ser torna-se fraco. Contemporaneamente a indiferença tem permitido várias violências.
Como nos ensinou William Shakespeare “Depois de um tempo você aprende que não importa o quanto você se importe... existem pessoas que simplesmente não se importam”, a maioria das pessoas se importa com questões de sua própria existência, o que muita vezes já é uma conquista grandiosa, como no caso das pessoas com deficiência e suas famílias que em suas conquistas diárias nos dão lições de coragem e nos faz refletir a respeito do que realmente tem valor. Sendo assim, se cada um de nós aprendesse esta lição de fazer de nossa existência um exemplo de superação e de dedicação ao próximo, como a família que luta para o desenvolvimento de seu filho, seria o começo de um mundo mais justo, seria quebrar a cultura da indiferença.
Erivaldo Fernandes Neto
Coordenador Técnico Pedagogico da Fenapaes
Fonte: FENAPAES
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